Compartilho com vocês o artigo "Porcaria de iPad, não imprime", de autoria do professor-doutor em Comunicação Digital da ECA, Luli Radfahrer, publicado no jornal Folha de São Paulo (04.03.2012). Divertido e inteligente, aborda a relação entre crianças e adultos e tecnologia. Boa leitura!!
"Porcaria de iPad, não imprime"
O pai da Malu não tardou a resolver o problema. Mas ficou com a indignação da moça na cabeça. Profissional de TI tarimbado, ele chegou a programar COBOL em cartões perfurados e, como todo mundo em sua época, se espantou com as maravilhas trazidas pela interface gráfica, internet, smartphones e produtos derivados. Por trabalhar na área, sempre teve a casa cheia de eletrônicos. A maioria deles já um pouco gasta, abandonada depois de vencido o ciclo de vida útil.
Como instrumentos em casa de músicos, panelas em cozinhas de gourmands, roupas em closets de dândis e ferramentas em oficinas de mecânica ou marcenaria, os equipamentos digitais não foram apresentados à Malu. Eles nunca fizeram parte de programas paradidáticos para estimular a pequena a se conectar nem entraram em qualquer tipo de atividade programada. Só estavam ali, disponíveis, empoeirando, abandonados pelo pai que trocara de brinquedo. Não espanta que provocassem curiosidade e fascínio.
Sem nada para fazer, em uma tarde absolutamente banal ela resolveu se aproximar das máquinas. E nunca mais desgrudou delas. Não demorou para galgar a diferença tecnológica que a separava do pai e passar a usar seus equipamentos com total indiferença.
Para que voltassem a ter telefone, os pais da Malu resolveram muni-la de um iPad, com a condição que fizesse os trabalhos da escola nele. Passadas algumas horas de sossego, eis que ela resmunga a frase que dá título a esta coluna. Sua indignação não é manha, é a intolerância justíssima de um consumidor indignado.
Conheço bem os pais da Malu. São amigos inteligentes e divertidos, mas não fazem o gênero pedante de quem cita referências em latim ou obriga o filho a estudar em escola bilíngüe. Nem são do tipo babão que adora aporrinhar os outros com histórias banais de seus prodígios-mirins. Absolutamente normais, eles me contaram essa história no meio de uma conversa de boteco, entre cervejas e petiscos.
Já tive a oportunidade de conversar com a Malu algumas vezes. Ela é uma mocinha muito bacana, mas para o seu bem (e para o bem de todos que a cercam) não é superdotada. É uma criança normal. Feliz, curiosa e hiperativa como é natural ser nessa idade. Sua irmã, a Clarinha, não é muito ligada em equipamentos. Prefere dar piruetas diversas e imaginar histórias com o Papai Noel e o Coelho da Páscoa lisérgicas demais para uma coluna familiar como esta.
Malu, Clarinha, Ico, Duda, Isadora, Artur e tantas outras crianças que pilotam com naturalidade os equipamentos e serviços do cotidiano eletrônico não têm nada de novo, diferente ou grandioso. Sua facilidade com as máquinas não faz deles "nativos digitais", "tecnófilos", "transcendentes", "singulares" ou qualquer outro termo que sociólogos de plantão adorem cunhar. São só curiosos, como um dia todos foram e como os mais espertos continuam a ser.
Sua lógica nem sempre dá certo. Outro dessa geração, o Fernando, tentou forçar um livrinho na entrada de DVD da TV. Para ele, fazia todo sentido: se o pai conta histórias que estão nos livros e se a TV as mostra, por que não pedir para a TV realizar a função do pai? Quando não deu certo, tentou mais algumas vezes, desistiu e largou os restos mortais para alguém arrumar.
Enquanto a maioria dos adultos busca definições, roteiros e práticas para usar Twitter, Facebook, Pinterest, Tumblr e tantos outros neologismos, os novos evitam perder tempo com perguntas e procuram utilizá-los como se existissem desde sempre, com a cautela de aprender seu mecanismo sem excesso de confiança nem medo de quebrá-los. Como o fazem com todo o resto do mundo. Forçá-los a brincar de pião ou amarelinha é tão nocivo quanto forçar crianças de outras épocas a ver documentários ou ouvir música clássica, transformando o que poderia ser uma grande descoberta em uma obrigação maçante.
Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP há 19 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, EUA, Europa e Oriente Médio. Mantém o blog www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve a cada duas semanas no caderno "Tec" e na Folha.com.
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